Essa história ocorreu com um amigo professor. Na época ele dava aulas num colégio estadual. Aconteceu na época em que vários bingos foram realizados no estádio Verdão. Eram anunciados prêmios de grande valor, em geral automóveis e as cartelas eram vendidas por semanas no comércio local. No dia do evento um palco central com som era montado no gramado e os veículos/prêmio estacionados estrategicamente perto das arquibancadas. Os melhores prêmios eram deixados para o final e o locutor ia se exaltando e estimulando a “galera”, ao tempo que ia “cantando” os números retirados de um grande globo. Tudo ao vivo. As arquibancadas do Verdão lotadas implicavam na constatação de que o evento movimentava quantias fabulosas. Era interessante o sistema de anúncio de que alguém tinha “batido”. O locutor sabia que “cantados” uma quantidade tal de números, provavelmente o vencedor estava por aparecer. E esse aparecia com os gritos e urros dos que estavam em seu entorno. O vencedor gritava “bati” e a galera ao redor dava uma força, agitando-se e urrando igual aos momentos de gol de final de campeonato. Com o barulho da turba o locutor no centro do gramado perguntava se o fulano havia mesmo “batido”. E o interessado tinha que demonstrar que sim, agitando a cartela ao tempo que dava uma pequena corridinha em direção ao centro do gramado, o que pela dimensão do Verdão significava uma corrida de uns cem metros. Nesse percurso o vencedor era aplaudido, vaiado e até tentavam jogar sacos plásticos com urina em sua direção(coisa de gente baixa!).
Mas o fato que vou contar não tem a ver diretamente com o bingo, mas ocorreu num dia de bingo. Meu amigo professor conta que em tendo adquirido suas cartelas dirigiu-se até o verdão. Mas desde antes de sua chegada ao estádio já lhe ocorrera os prenúncios de uma grande indisposição estomacal. Em resumo “algo se formou em seu interior”. E essa formação veio acompanhada de arrepios pelo corpo.
Conta meu amigo que apesar disso não pensou em desistir, ante os grandes valores dos prêmios: sonhava em sair do estádio triunfante, já dirigindo um dos carros sorteados. E claro, antes do começo do evento, já tinha se dirigido a vários banheiros do estádio. Estavam, como sempre, em condições lamentáveis. Um dedo de água acima do piso denunciava um alagamento de água misturada com urina. Prenúncio de que podia “pregá” uma frieira das bravas, daquelas de tratar com baciadas de creolina. Um nojo.
Diante da impossibilidade de utilização do banheiro do verdão e como a coisa ainda estava suportável, nosso amigo resolveu permanecer no evento. E sentou-se junto à massa, num dos anéis de cima das arquibancadas, justamente para sair rápido em caso de emergência.
E o bingo começou. E os arrepios aumentaram de intensidade. Ele conta que podia perceber até uma certa sintonia entre os arrepios e o cantar dos números. E o locutor: 24! é o tourinho da floresta! E la vinha um arrepio. E a barriga fazia aquele uóoooooooo surdo, como se algo estivesse se mexendo. E o frisson aumentando e a galera insuflada e excitada pelos primeiros prêmios urrava na arquibancada. Alguns até batiam os pés perto dele, imitando os tambores que anunciam o clímax de alguma coisa. E esses impactos só pioravam a situação. Chegou uma hora que ele antevia as comemorações, já se segurando, para que nada de excepcional e abrupto irrompesse nessa ocasião. Do meio do bingo pra frente nosso amigo já tinha perdido a atenção no locutor. É que ele sabia que não era o caso daquele tipo de pressão que “carimba a zóiba”. O negócio seria mais explosivo, com certeza. Todo seu corpo e mente estavam concentrados para evitar o pior, que seria o vexame completo, perante milhares de pessoas. Nosso amigo não podia pensar, sequer em se livrar de gases. Embora soubesse, do fundo de sua alma que uma quantidade considerável deles estavam a girar em suas entranhas, pressionando, pressionando...Era o corpo estranho naquela aflição de “me tira daqui!”
Algazarras, gritaria, excitação ao seu redor na parte final do bingo. Eram os melhores prêmios. E como esses eventos acabam gerando uma certa proximidade solidária com as pessoas, nosso amigo conta que alguém percebera seu semblante um tanto quanto carregado, sua postura recolhida, acanhada, em sofrimento, expressão de angústia no rosto. E tributando, o desconhecido, tal postura com o não ganhar dos prêmios, resolvera ser solidário. Para completar, além da agitação normal, quando um sorteio terminava e nosso amigo não ganhava, o tal cidadão, no intuito de se solidarizar vinha com tapinhas nas suas costas com aquelas frases do tipo: não fica assim não! Na próxima dá! Mas, os tapinhas. Ah aqueles tapinhas... Eram como provocações ao “corpo estranho”. Nosso amigo conta que Ele(o corpo estranho) se “azangava”!Tinha personalidade a coisa! E não teve jeito. Dessa parte do bingo para a frente nosso amigo já passara abertamente a rezar para que nada ocorresse no local. Pensou mesmo que se o pior acontecesse ali, no meio daquela turba, talvez por nojo não o linchassem, mas milhares de pessoas iriam “abrir” dali. Um clarão apareceria na arquibancada o que por sua vez chamaria a atenção da organização... ia ser um caos...sua situação discutida ao vivo, pelo microfone do locutor...se o cara fosse muito engraçadinho poderia perguntar: qual o seu nome meu filho? Essas coisas...
A situação era terrível, mas, o mal maior não ocorreu.
Era hora de tomar uma atitude e nosso amigo a tomou corajosamente. Concentrou-se e se levantou. Resolveu ir embora a pé. E talvez encontrasse um terreno baldio, ali pelas cercanias do Verdão...E ele conta que naquela situação começou a percorrer o longo espaço que liga as arquibancadas com as portarias do verdão. Andava se arrastando. Nem se podia ver seu pescoço de tão encolhido. Ele parecia um velho de setenta anos, um pé depois do outro, com suas chinelas se movimentando... De repente o bingo acabou. E a galera, que estava de ônibus, claro, começou a correr em direção aos veículos estacionados para garantir vaga para a primeira viagem. Centenas de pessoas correndo. Eles iam passar por ele. E se alguém lhe desse um esbarrão ? Antevendo essa possibilidade suas preces aumentaram. Momentos terríveis de tensão quando aquele povaréu passou perto dele, aquele tremor da correria. Ele se encolheu definitivamente no aguardo da boiada estourada. Nesse momento ele recebeu um abraço apertado. Uma aluna o reconhecera e o cumprimentara: PROFESSOR, O SENHOR AQUI???!!!!
Ele jura que com esse abraço uma lágrima percorreu o seu rosto. Não pela emoção, mas pela percepção de que talvez tudo pudesse ter ido por água abaixo...Antes de cumprimentá-la certificou-se de que ainda estava a salvo. Então, como estava “estranho” e “branco” nas palavras dela, ele lhe abriu o coração e pausadamente contou o que estava ocorrendo. Talvez, o sentido de proteção próprio da sua condição de mestre tenha lhe impelido a contar, numa espécie de alerta: filha, corra daqui!
Mas a aluna lhe tranquilizou e lhe disse: professor, moro perto daqui. Venha até minha casa, por favor!E assim, pela primeira vez nas últimas três horas ele sentiu uma esperança de que tudo acabaria bem. E amparado pela aluna dirigiu-se pé ante pé para a casa daquela.
Tudo poderia ter acabado aqui. Mas tem mais.
Realmente a aluna morava numa casa próxima ao verdão. Era uma casa simples e para sorte do nosso amigo não tinha muita gente em casa. Os pais da mesma estavam para fora, conversando com vizinhos, aproveitando do frisson da festa popular no estádio vizinho.. Após uma breve apresentação ele foi encaminhado para dentro da casa. Perto da entrada uma sala, com sofás e um banheiro. Da sala ele pode perceber que a casa não era forrada e que dava para ver, bem acima da estrutura do banheiro a caixa d´agua de eternit. Dava pra ver até a bóia. Ele direcionado pela aluna, abriu a folha da porta e avistou o vaso. Fechou a porta. Abaixou rapidamente as calças. Rapidamente, mas concentrado, para que a coisa não esculhambasse justamente quando a salvação estava tão próxima e....até fechou os olhos....mandou ver...passagem de ano da praia de Copacabana perdeu em tempo de tiroteio... O negócio foi feio, foi terrível. Ele conta que realmente algo muito estranho havia se formado em seu interior e ele não sabia o que era. Parecia que algo muito “especial” estava morto lá dentro, há dias...Mas nosso amigo estava tranquilo. De forma maquiavélica já pensava em fazer o que tinha que fazer de forma mais rápida possível para que os parentes da menina não tivessem tempo de voltar para casa. Assim, quando retornassem já estaria longe e a salvo. Talvez um constrangimento quando a visse novamente na escola...Mas ela era uma boa menina e parecia discreta. Talvez um grupinho de no máximo uns dez alunos ao final soubessem do evento...mas também acabariam se esquecendo depois de um tempo...ah...mandar ver mesmo... E mandou ver...
Terminado o serviço nosso amigo conta que ele mesmo não estava aguentando o “bodum”. O negócio estava realmente especial. O suor ainda escorria em seu rosto, mas um alívio percorria a sua alma, sem exagero. Levantou-se e puxou a descarga. Era um daqueles cordões com um pino branco na ponta. Experiente, malandro, puxou com muito cuidado a descarga, com medo que a mesma arrebentasse, sei lá. E aquele chuáaaaaaaaaaaaa barulho característico da descarga irrompeu. A água veio. Até com volume, mas...como o azar vem sempre em ondas....não foi o suficiente para uma limpeza completa. Mas nosso amigo ouviu então o barulho característico da caixa d´água se recompondo´. Nem tudo estava perdido. Mas ele notou um burburinho na sala contígua. Tinha gente na sala. E como sair? Com aquele cheiro horrível?Aí que ele teve a grande idéia. Abriu o armário do banheiro em busca de algum produto que amenizasse o odor. E não havia nada utilizável: nem Shampoo, nem sabonete líquido, pinho sol (seria sonhar demais ter pinho sol)...só tinha uma pasta de dente Kolinos daquela amarela e verde. Meio tubo de Kolinos. Aí ele pensou: ah acho que dá aquele frescor né? E logo passou a espremer o tubo no vaso. Até artisticamente. Em rodelas ao redor do vaso pútrido. E quando a água parecia ter voltado ele incorreu no erro que não tinha cometido da primeira vez. Relaxara. Puxou com força o cordão da descarga. E o que aconteceu? A p. do cordão rompeu-se.....lá em cima....na argolinha...
Ele ainda tentou subir no vaso... mas depois de alguns minutos desistiu. A maré tava t]ao brava que só faltava ele quebrar a porcaria do vaso. Então ele guardou o que sobrou do kolinos e o cordãozinho no armário e se preparou para sair. O vaso nem tinha tampa. Quem entrasse ali iria notar que ele gastara meio tubo de Kolinos do vaso, imediatamente. Danou-se. Vazar dali. Rapidamente.
Mas o pior foi quando ele abriu a porta. Abriu a porta e obviamente acompanhou-o todo aquele ar quente e podre do interior do banheiro. Com desolação percebeu instantaneamente que toda a família da moça também gostava de bingo. Como toda família cuiabana era numerosa. Primos, tios, tias, sobrinhos, adolescentes, velhos, gente de todo tipo na sala. Muita gente em pé e vários amontoados nos sofás. Ume menininha de uns dois anos, estava caminhando em sua direção. Meu amigo jura que com a abertura a porta, talvez pelo odor que a colheu, a menininha até caiu ao chão, de bunda. Todos o olhavam. Silêncio total na sala. Ele abaixou a cabeça. Sua aluna não estava dentre os presentes. E, se estava, não lhe dirigiu palavra. Ele saiu calmamente já se preparando para “ele” – sim, “ele” o gaiato que existe em toda família – no meio daquela gente toda teria com certeza ao menos um gaiato. Mas meu amigo conta que era um gaiato vergonhoso. Talvez com pena o gaiato pegou leve com ele. Percorrida quase toda a sala em direção à porta, quando já quase estava fora ele ouviu um leve: que que isso hein? Muitos riram. Nosso amigo só apertou o passo. O frescor da noite o colheu na parte de fora da casa. E ele finalmente pode ir para a sua.
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