Um evento ocorrido recentemente me deixou atônito. Após um longo período sem retornar à Chapada dos Guimarães resolvemos almoçar na cidade, no domingo, 20 de abril. Almoçamos e depois fomos com as crianças para a Praça Central – Dom Wunibaldo. Entretanto, começou a chover e resolvemos retornar à Cuiabá. A Rodovia Emanoel Pinheiro, que liga Cuiabá à Chapada é conhecida por ser uma estrada perigosa com vários pontos críticos. E, com chuva esse perigo aumenta. Retornávamos, várias famílias em seus carros, a maioria em velocidade média e cuidado redobrado mas, como sempre, alguns “ases do volante” teimavam em desprezar a sorte empreendendo ultrapassagens sem sentido, para ganhar segundos ou quiça minutos na chegada à Capital.
Apesar da tensão nas descidas e curvas da saída da Chapada, tudo parecia ter dado certo. Mas, de repente ocorreu um acidente no trecho mais retilíneo da estrada, após a entrada para Manso, há pouco mais de dez quilômetros de Cuiabá. Provavelmente o acidente resultou de uma ultrapassagem mal sucedida pois ocorreu no final de uma subida. Foi um choque de frente entre dois carros. Logo após o acidente as duas pistas ficaram interditadas e uma longa fila de veículos se formou em ambos os sentidos da Rodovia. Os veículos ficaram enfileirados e meu carro acabou se aproximando do gravíssimo acidente há pouco mais de cem metros do mesmo. Estávamos com duas crianças e uma adolescente no carro e uma longa espera se iniciava para a liberação da pista. Pelo retrovisor, eu podia ver a fila enorme de mais de quilômetro que se formou atrás do meu carro. Carros pequenos, grandes, ônibus, carros populares, de luxo, revelando a variada gama de pessoas representadas naquela multidão: todos os extratos sociais.
Entretanto, o que nos causou espécie foi a reação dessas pessoas. Era o cair da noite e uma neblina fria e incômoda entristecia a paisagem retorcida do cerrado à beira da Rodovia. E o barulho das portas dos carros dos mais impacientes se abrindo e fechando passou a ser recorrente. As pessoas começaram a sair dos carros o que até então seria normal. Mas o que se passou a seguir, no meu entender, fugiu da normalidade. Uma curiosidade mórbida tomou conta das pessoas. Pelo retrovisor pude ver os primeiros que caminhavam rente aos carros se dirigindo para a cena do acidente. O burburinho foi aumentando e o fluxo de pessoas também. De repente, uma senhora gorda passou correndo ao lado do nosso carro e no afã de chegar mais rápido ao acidente jogou seus chinelos à margem da rodovia. Parecia tê-los abandonado mesmo, em prol do seu objetivo maior: chegar à cena. Depois, uma turba de adolescentes que estava num desses ônibus de excursão. Vários homens. E até mesmo um casal, com um bebê, coberto por uma fralda, para protegê-lo da neblina. Nesse momento a curiosidade já tinha ultrapassado os limites. O fato se tornou evento. Já havia correria de vários para o local. Alguns parâmetros como o bem estar de um bebê deixados de lado para que a curiosidade fosse saciada já estavam rompidos. Fiquei imaginando: seriam pessoas preocupadas com algum parente que seguira para Cuiabá um pouco antes? Passei a reparar suas fisionomias e verifiquei algo surpreendente. Eram expressões “normais” de pessoas diante de um evento corriqueiro da vida, como escolher frutas num stand de supermercado. Não vi expressões de preocupação ou temor por algum parente. Mas o pior foi a volta, dessas pessoas, pouco mais de trinta minutos, quando as providências das autoridades decerto já haviam sido tomadas(ouvimos o SAMU passar e várias viaturas da Polícia Rodoviária Estadual). No retorno alguns conferiam entre sorrisos de vitória as fotos tiradas em seus celulares. Pelos comentários dos vários que voltavam e que se esforçavam por demonstrar a todos os que pudessem ouvir suas teorias acerca do evento algumas informações entrecortadas nos “eram repassadas”( a senhora gorda ao recuperar o seu chinelo bradava suas impressões aos expectadores virtuais), numa espécie de mosaico que se ia formando. Provavelmente o veículo que retornava era ocupado por uma família. Havia crianças. Alguns ficaram presos nas ferragens. O quadro era grave. Talvez fulano não se salvasse.
O terrível quadro ganhou uma nota diferenciada para mim. Não tinha o foco nas vítimas. Mas nos expectadores do evento. Expectadores no sentido televisivo. Como uma cena de Big Brother em que pessoas comuns passam a ser protagonistas de algo que não se sabe o quê. Imaginei uma cena terrível: uma pessoa presa em ferragens. Inconsciente? Consciente o bastante para preocupar-se com o estado de saúde da esposa, de filhos? A preocupação de bombeiros, policiais, paramédicos, agindo com a rapidez possível. E há alguns metros dezenas de pessoas a acionar vários flashes de celular para capturar uma imagem sua, de uma privacidade ímpar. Um flagrante talvez do momento mais terrível de sua vida. E para quê? Talvez para passar via e-mail para alguns conhecidos, ou para a própria imprensa, emprestando-se, nesse ato, um relevo, uma importância de testemunha ocular do evento. Testemunha sem sentimentos. Fria e distante dos dramas. E que distância...que frieza...
Enfim, está lá, preso em ferragens o ser humano enquanto coisa. Um objeto de mídia que servirá para saciar a curiosidade mórbida de alguém e a alimentar essa coisa sem sentido que nada mais é que a banalização, a massificação da violência e de seus produtos, a blindar a nossa sensibilidade e a nos preparar para enfrentar(?????) um mundo cada vez mais terrível em que o outro....é coisa! Que coisa, não?
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